domingo, 3 de junho de 2012

crônica de uma mulher repassando toda sua vida


A N T E S    DA    C H U V A
... acontecendo aqui, direi que as nuvens arranham o céu, como gatos rasgam minha mão, como caminhões furam o pôr do sol na estrada, como meninos que cortam ilusões de meninas; acontecendo agora, direi que as cores escuras do céu me assustam, como o grito gemido da gata na transa noturna, como a lua que não se vê porque é nova e se oculta, como os suspiros da menina ferida no peito pela dúvida, como os ruídos retumbantes de caminhões na tempestade. 
E, acontecido, direi que a lua não existe, os meninos morreram, as nuvens se dividem pra não chorar, que o sol se pôs há tempos, os gatos fugiram da tempestade, os caminhões não passam aqui, direi ainda que as cores são ilusões, os gritos cessaram, que a menina sou eu, e minha mão já não sangra, meu peito resmunga, os suspiros já foram meus, o tempo passou e minha pele estica mais do que meus sonhos; meus ossos tremem no frio, no calor, nas lembranças, nos vazios do esquecimento... 
e direi tudo: que minha imagem não se vê mais na superfície do lago, e sim no fundo, e o lago espera que eu logo pule e recupere minha imagem; 
mas isso é suicídio, é narciso...
e na verdade, o tempo não passou, eu corri, e voltei para a gema, pois eu quero me sentir viva novamente ou pela primeira vez. Quero fazer uma viagem pelas cores do céu antes que escureça, ou talvez, deixar o último cigarro queimar sozinho, e ver a fumaça vagando em formas ovais pelos ares afora, quem sabe eu possa sorrir como se fosse a primeira vez, ou gemer de amor numa transa noturna, iluminada pelos faróis dos caminhões, e sentir rasgando as costas e os lençóis pelo meu gato, em plena lua nova, até nascer um milhão de sóis...

eu quero berrar um bilhão de vezes, até sumir a minha voz...

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