sexta-feira, 5 de abril de 2013

POR DENTRO


você não sentiu todas as voltas que me fizeram cair de cara na quina, você não viu a cor de meus olhos pulando de dor quando gritei a vinte metros de altura, você não ouviu minhas conversas comigo mesma, sozinha e bêbada, você não tocou a labareda crepitante acreditando que a fogueira fosse pesadelo de filme, você não se queimou por ser ingênuo. você não se queimou por ser ingênua. você não cheirou a própria pele queimando, sem saber o que fazer. você não sofreu fisicamente, você não teve as dores do parto infinito, nem as angústias de um futuro indeciso,  não amou tão intensamente que se desfez em finas gotas sem honra nem cara, tão intensamente que deixei de ser, só pra dar, e acabei sem corpo nem alma pra mim; você não se matou por dentro, só porque achava que dentro nada tinha que valesse investir, que valesse a pena, que valesse amar; você não sentiu a vida e a morte, o amor e o ódio, o simples  e o complexo, você não percebeu os problemas, você não viu o sim e o não, talvez. você, sem saber disto e disso, sem saber nada, você diz que me conhece e que sabe o sinto, mas você nunca me viu nua, sorrindo à toa, nua, como sempre estive, como fui, nua, a clareza de minha nudez é tão natural que você finge não vê-la, e não sou rainha, mas acredite, estou nua, sou nua, sou minha, estou viva e você que morra de inveja. 


quarta-feira, 3 de abril de 2013

fragmentos da suavidade (trechos)



seus cabelos ondulavam.
a brisa traduzia seus contornos. sangrava morta ou vida. 
mas apenas os cabelos ondulavam. 
seu rosto se mexe, agora. e de lado ele cai. 
foi um toque e novamente caiu. quem tocou - ele - caminha ao redor do corpo, perplexo - ao redor do corpo. 
desesperado (ele não sabe que está). 
e nada ao redor, apenas no chão, ela...
...
(dias antes do crime)


Cabelos ondulados. No rosto. Os cabelos que todos olhavam.

E uma mocinha, muito simpática, meio obesa, singela, sorridente e um pouco fútil olhava atentamente para aquele cabelo pós-permanente. Perguntou para a dona do cabelo por que ela fez, quanto ela pagara, que estava lindo, que parecia a Patrícia Pillar, que outro dia, que eu também já fiz mas, que...
Tima respondeu que era pra ficar com uma cara diferente. Tima aproveitou e perguntou qual era o endocrinologista do cérebro dela. Tchau e saiu.
A mocinha, muito simpática, meio obesa, singela, sorridente e um pouco fútil, não entendeu.

(motivo do mau humor de Tima)

Tima olhava o copo de chá como se fosse um ornamento. Seu rosto não tinha nenhuma alteração expressiva, continuavam seus olhos fixos no copo, brincando com ele entre os dedos. O teto deste bar-café atrai o olhar distraído de Tima. Parece mais interessante observar a arquitetura de uma lanchonete-bar-café do que o copo com chá.
Quando a lágrima do seu rosto cai na mesa, também cai no guardanapo.
Já havia oito meses que Gema se casara. Está vivendo no Canadá. Foi grande a surpresa quando Tima descobriu que Gema trocou a vida de executiva, de mulher dona de si, por uma vida numa cidade interiorana, a 200km de Montreal. E ela trocou porque - talvez porque ele - o cara com quem Gema casou, ele parece ser uma mistura do charme de Robert Redford, com a bunda de Mel Gibson, e o restante de Richard Gere, e muito dinheiro, muito mesmo. Não a estava chamando de interesseira... longe disso, só levantou pequenas estatísticas.
A composição daquela lágrima ainda não se decidiu por que chorava. Se da falta que fazia ou da falta que faz.
Foi tudo muito civilizado:
                                                - eu gosto de você, mas o Mac me completa.
                                                - te completa em quê? - fala Tima chorândida
                                                - você não pode entender!
                                                - você pensa que eu sou o quê?
- como assim, Tima?
                                                - Por que você não foi sincera comigo?... E tem mais uma coisa. Eu não gosto quando você não me trata como mulher.
                                                - como assim?
                                                - você sabe perfeitamente o que eu quero dizer. Mas eu vou deixar mais claro: eu sou uma mulher, sinto como mulher, tenho TPM como toda mulher, e minha paixão por você não me impede de ser mulher, portanto não me trate como aqueles teus amantes, que quando transavam contigo, não faziam sexo, mas praticavam canibalismo.
                                                - você está exagerando.
                                                - ótimo. É bom que eu esteja exagerando mesmo. Pelo menos assim você sabe o que eu sinto realmente:
                                                quinhentas mil palavras de desafogo e duas garrafas de uísque.
 (depois da briga)
Secretária eletrônica:
- não estou no momento, mas se quiser...
- não estou no momento, mas se quiser...
- pare de ligar, se for você, pare de me ligar.
- vou embora amanhã. Adeus, Tima.

Na verdade, as dores são as mesmas numa coisa: na pontada que dá no peito, até suforcar-nos.


o prédio e o crime do loiro (trecho)


(...)
O porteiro ouvia agitado o segundo tempo do jogo na televisãozinha e não tirava os olhos da tela. Não percebeu o vento gelado nas costas como não percebeu o morador loiro do 61 entrar pelo portão automático que curiosamente estava encostado porque aquela mocinha do 31 que fuma feito chaminé foi comprar rapidinho na padaria do lado um maço de alívio mas não tinha voltado ainda porque batia papo no telefone com o namorado ou coisa assim que está em São José dos Campos trabalhando ou visitando a família, tanto faz.

(ufa! sem vírgulas é foda!...)

Tinha uma cara permanente de macho de novela do horário nobre quando vai dar em cima da gostosona principal que na história é mal amada e ele diz pra ela “Você precisa de um homem que te dê carinho e compreensão, alguém que te deseje 24 horas do fundo do coração”. O corpo de 28 anos, atlético, de quem está sempre em forma sem ficar enfurnado numa academia. Subia as escadas rapidamente como exigem os músculos alongados e o ímpeto da juventude, ainda que quase madura, chegando aos 30 logo, logo. 

Quando ia colocar a chave para abrir a porta, o jovem Miguel, loiro, branquíssimo como o luar, sentiu uma fisgada num músculo entre o ombro direito e o pescoço. Veio uma dor aguda concentrada na região do ombro. Ameaçou gritar abrindo a boca feito um túnel Ayrton Senna. Mas a lâmina que lhe atravessou a garganta da esquerda pra direita e não permitiu o grito. Caiu. Morreu. Mais pálido, jorrando vermelho. Festival de cores: amarelo-cabelo, vermelho-sangue, branco-morte...
(...)