uma criança. com os olhos na janela, vislumbrando –
vislumbrado!! - o chão.
o chão que não se afasta logo. o avião que demora a
decolar. a vida que demora a acontecer. crianças são impacientes, ansiosas. e
porque estão no mundo há pouco tempo acham que tudo tem de levar pouco tempo
pra acontecer. enfim, quando o avião decolou, como um foguete, o sorriso
finalmente apareceu no rosto infantil. ah, levantou-se vôo. como o inevitável
primeiro beijo. o chão se afastou na medida em que o tempo passa quando se
trabalha muito naquilo de que se gosta. a criança grudou os olhos na janela
minúscula e esperou pelo momento em que o avião ultrapassaria as nuvens.
como
seriam? um mito poderia cair naquele instante: o de que as nuvens eram de
algodão.
mas na verdade, criou-se outro mito: o de que o céu
virou o mar e o mar virou o céu. algo assim. porque quando a criança olhou o
céu e o chão, pensou estar na praia. vendo o chão parecer o mar, vendo a linha
do horizonte separando o mar do céu. ambos azuis. e vendo a areia branca. era
a coisa mais linda que jamais viu em toda sua vida. mais lindo do que aquela
garota linda que conheceu, de lindos cabelos longos, de lindo sorriso puro, de
gestos lindos. como era uma criança, a melhor palavra que conhecia era lindo ou
linda ou seus plurais.
os olhos da criança lacrimejavam por emoção e por
pouco ter dormido. e porque a claridade era imensa, como a paixão nos ilumina,
os olhos não podiam suportar ver, assim como o coração não podia com tanto
carinho. chorar era a maneira de suportar a dor de manter os olhos abertos.
a criança relaxou e descansou um pouco.
já perto de chegar a porto alegre - a criança não tem
certeza - em certo momento, achou estar vendo o mar, ou o céu (que está
embaixo!!) ou nada. podia ser o nada. depois, era possível ver uma porção de
estradinhas, como veias de um coração inchado. e tudo se movia tão devagar que
era possível brincar de imaginar que nas estradinhas lá embaixo havia um carro
muito, muito veloz que caminhasse por elas numa velocidade inimaginável,
atravessando montes, vales e serras. a criança se divertiu muito com isso. até
esqueceu por algumas horas a menina linda de cabelos longos e lindos.
chegou a porto alegre. o pouso foi incrível. as
sub-asas do avião voltaram ao contrário e usaram o vento pra frear. também a
criança não sabe o nome daquilo então chamou de sub-asas. o que importa é que
de repente, o avião saiu de uma muita velocidade pra uma pouca.
saiu de porto alegre. levantar vôo outra vez provocou
a mesma emoção da primeira vez. é como se o segundo beijo fosse a confirmação
do sentimento recíproco do casalzinho de namoradinhos. a criança lembrou que
nem se quer deu o primeiro beijo na menina linda de cabelos longos e sorriso
lindo, e ficou momentaneamente triste.
mais uma hora e pouco para montevidéu. estava a dez
mil metros do chão. mais que o Everest do chão. se o Everest estivesse embaixo
do avião, seria possível vê-lo como um trocinho pontiagudo distante a dois mil
metros. muitas áreas rurais, muitas fazendas, muitas vaquinhas, que pareciam
brinquedinhos, coisinhas miudinhas que davam vontade de brincar.
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